A Sociedade Brasileira de Genética Médica e o processo de elaboração da Política para Atenção às Pessoas com Doenças Raras no Âmbito do SUS

Histórico

Desde 1988, o sistema de saúde foi unificado no país, tornando-se o Sistema Único de Saúde (SUS) universal e acessível a todos os cidadãos. Com um melhor acesso aos cuidados de saúde e controle parcial das doenças relacionadas com a pobreza, o fardo dos defeitos congênitos aumentou progressivamente, passando da quinta para a segunda principal causa de mortalidade infantil entre 1980 e 2000, destacando a necessidade de estratégias específicas de políticas de saúde. Ações dispersas governamentais relacionadas aos defeitos congênitos/doenças genéticas no Brasil já vinham ocorrendo no inicio dos anos 2000 e incluíam a triagem neonatal, imunização contra rubéola, fortificação de farinha com ácido fólico e programas de tratamento para Osteogênese Imperfeita, Doença de Gaucher e Fibrose Cística.

Apesar da estreita relação entre a genética medica e manejo dos defeitos congênitos/doenças genéticas, em 2003 menos de 30% da demanda total era atendida pelos serviços existentes de genética medica, devido ao difícil acesso a serviços especializados, concentração dos serviços em poucas regiões e insuficiência de recursos ou suporte laboratorial. A maioria dos serviços não estavam integrados ao SUS e a falta de reconhecimento da genética médica como especialidade no sistema de saúde vinha impedindo seu crescimento.
Após o grande impacto dos novos avanços da ciência na área da genética e do sequenciamento do genoma humano, houve uma preocupação do Ministério da Saúde, através de seu departamento de ciência e tecnologia em regulamentar o uso e acesso ao genoma humano, sendo criado um grupo de trabalho em 2001. A época, mostrou-se que o Brasil sequer estava preparado para a assistência as malformações congênitas/doenças genéticas, sendo isso reconhecido pelo grupo e recomendada abordagem específica. Em 2004, foi criado pelo Ministério da Saúde um grupo de trabalho para elaborar uma política nacional especial para a genética clínica; Em 2009 essa política foi publicada pelo ministro da saúde, mas nunca de fato implementada, uma vez que nem a dinâmica operacional nem os mecanismos de financiamento chegaram a ser previstos em textos complementares.

Caminhando para a Política para Atenção às Doenças Raras (DR) no Âmbito do SUS

A política de Genética Clínica nunca foi posta em prática. Em 2012, após pressão significativa de grupos de usuários, foi finalmente instituído um novo grupo de trabalho para elaborar uma política nacional para atenção a doenças raras no SUS. O conceito de doença rara é complexo e baseia-se principalmente na prevalência da doença. O conceito da Organização Mundial da Saúde é que seriam aquelas com uma prevalência inferior a 65:100.000 (1,3:200) habitantes. Aproximadamente 80% das doenças raras são genéticas.
O Grupo de Trabalho (GT) foi composto por representantes do Ministério da Saúde, por especialistas em doenças raras e por associações ligadas às doenças raras; dentre os participantes, tanto indicados pelo ministério quanto por associações, havia alguns médicos geneticistas membros da SBGM. O processo de elaboração passou por todas as etapas, incluindo consulta publica, e o texto da politica foi finalmente publicado em inicio de 2014 (Portaria GM/MS no. 199 de 30/01/2014).

Detalhamento sobre a Politica das Raras

Para efeitos de organização e credenciamento de serviços, apolítica foi dividida em “raras de origem genética” e “raras não genéticas”. Desta forma, foram elencados dois eixos de DR, sendo o primeiro composto por DR de origem genética: 1- Anomalias Congênitas ou de Manifestação Tardia, 2- Deficiência Intelectual, 3- Erros inatos do Metabolismo; e o segundo formado por DR de origem não genética. O eixo das anomalias congênitas inclui toda a anomalia funcional ou estrutural do desenvolvimento do feto, decorrente de fator originado antes do nascimento, seja genético, ambiental ou desconhecido, mesmo quando os defeitos não forem aparentes no recém-nascido e só se manifeste mais tarde (OPAS, 1984). Para o eixo II – Doenças Raras de Natureza não Genética – foram propostos os seguintes grupos de causas: 1- Infecciosas, 2- Inflamatórias, 3- Autoimunes, e 4– Outras Doenças Raras de origem não Genética .
A organização da atenção deve seguir a lógica de cuidados já vigente no SUS, produzindo saúde de forma sistêmica, por meio de processos dinâmicos voltados ao fluxo de assistência ao usuário. A assistência ao usuário deve ser centrada em seu campo de necessidades, vistas de forma ampla. No que se refere à atenção especializada em doença rara, serão credenciados Serviços de Atenção Especializada e Serviços de Referência em Doenças Raras como componentes estruturantes complementares à Rede de Atenção à Saúde. A atenção aos familiares e pacientes com DR deverá garantir:

a) Estruturação da atenção de forma integrada e coordenada em todos os níveis, desde a prevenção, acolhimento, diagnóstico, tratamento (baseado em protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas), apoio até a resolução, seguimento e reabilitação.
b) Acesso a recursos diagnósticos e terapêuticos;
c) Acesso à informação e ao cuidado;
d) Aconselhamento Genético (AG), quando indicado.

No que diz respeito a remuneração dos serviços, dependendo do tipo de credenciamento (serviço de atenção especializada ou serviço de referencia) haverá um repasse mensal visando suporte para manutenção de equipe multidisciplinar. Quanto aos exames necessários para investigação/diagnóstico de doenças raras, vários novos testes não antes disponíveis no SUS serão incorporados, incluindo investigações metabólicas, FISH, exames moleculares e array-CGH. Os serviços credenciados, no entanto, não serão remunerados pelos testes específicos, e sim através de um valor fixo por novo paciente atendido, devendo cada serviço organizar o fluxo de investigação, bem como estabelecer parcerias para execução de exames se necessário. A politica prioriza a atenção integral, focada no paciente/família e na equipe especializada. Neste sentido, o aconselhamento genético entra como importante componente da politica, havendo também um código especifico de procedimento/remuneração prevista para os serviços que sejam credenciadas na linha das DR genéticas, que deverão disponibilizar o aconselhamento genético.

Conclusões e Expectativas

A colocação em prática da politica de DR dependerá das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, que são os agentes do SUS. Por outro lado, cabe ao Ministério da Saúde referendar e credenciar os serviços especializados, além de fazer propostas de pacotes de atenção diferenciada para aqueles que aderirem à política, para torná-la mais atraente.
Até o momento pouquíssimos serviços foram credenciados. A portaria foi publicada em inicio de 2014, e os credenciamentos iniciais ocorreram apenas em fins de 2016. Espera-se que a partir de agora, com serviços referendados e remunerados de acordo com as diretrizes da politica, evoluamos para uma modificação na atenção as doenças raras, e que seja um movimento crescente, com incorporação de novos serviços. Vale também lembrar que para as poucas doenças raras com terapias especificas disponíveis, as mesmas terão que ser regulamentadas através de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT). Especialistas da SBGM vem participando ativamente do processo de elaboração de alguns PCDT, que facilitarão o acesso sobretudo a terapias de alto custo de modo mais racional, evitando a judicialização e o desperdício de recursos.
Uma política oficial para as doenças raras, com a incorporação de procedimentos laboratoriais específicos e do aconselhamento genético significa o reconhecimento da importância da genética médica para o cuidado e prevenção de defeitos congênitos, o reembolso de procedimentos, o uso racional dos recursos e uma maior cobertura. Isso posto, estimulada por tal política, a organização de uma rede funcional integrada em genética não apenas utilizará os serviços já existentes como espinha dorsal, mas também estimulará a criação de novos serviços em todo o país. Ações visando prevenção de doenças raras, educação para a comunidade médica e para a população em geral e a organização de bases de dados epidemiológicos sólidos são fortemente recomendados como medidas complementares.

Fonte: Sociedade Brasileira de Genética Médica.